quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Crônica


Ah, o copo de requeijão (Humberto Werneck)
Você se levanta no meio da noite — e então ele (ou ela), com aquela sensualidade postiça que o sono empresta à voz, aproveita para pedir um copo d’água. Você se sente um pouquinho explorada(o), a ideia era ir ao banheiro, ali ao lado, mas noblesse oblige: com ligeira irritação, a viagem no escuro é estendida até a cozinha.
Faz tempo que vocês estão juntos, já viram um montão de vezes esse filme em que o pedinte noturno ora é um, ora é outro. Mas nenhum dos dois atentou para um detalhe. No começo da história, quando se punha no menor gesto o empenho em agradar, a água vinha no melhor copo que houvesse no armário. De cristal, se possível. Agora repare: o que você vem trazendo para matar a sede do ser amado é um reles copo de requeijão.
Não tenha dúvida, alguma coisa mudou — para pior. O que você tem nas mãos é mais do que um recipiente de vidro barato até há pouco habitado por um laticínio espesso. É o próprio símbolo da avacalhação que, sub-repticiamente, vai pondo a pique os mais sólidos Titanics conjugais.
Exagero? Então veja: quem se detém na prateleira dos requeijões cremosos, no supermercado, em geral não está querendo um copo. Quer uma coisa gostosa para passar no pão, de manhã. Quando a coisa gostosa acaba, alguém — não culpe só a empregada — lava a embalagem, remove o rótulo e põe no armário. Você não pediu aquela coisa vulgar, mas, por inércia e desleixo, lá está ela, convivendo com os belos copos da marca francesa Arcoroc. Aí o outro pede água — e você, em vez de levar no Arcoroc, leva no copo de requeijão. A vulgaridade encarnada nesse intruso se instalou entre vocês. E creia: a menos que se tome uma providência, não vai ficar aí. Como no alcoolismo, não se fica no primeiro copo.
Mas pode ser que você, no supermercado, tenha pensado também no continente, além do conteúdo. Problema seu. Só não venha dizer que alguns deles são até jeitosos. São todos horrendos — inclusive aqueles esguios, retilíneos, que talvez sejam os piores: copos de requeijão que não ousam dizer o seu nome, esses pretensiosos se fingem de Arcoroc. Devem ser tratados como os impostores que são.
Aqueles “culturais”, vamos dizer, com reproduções de obras de arte, então nem se fala. Já que ninguém vai acabar com eles, aqui vai uma sugestão: por que ao menos não buscar uma correspondência entre a estampa e o conteúdo, impondo alguma lógica a essa sofrível pinacoteca matinal? Para o requeijão light, as figuras longilíneas, no limite da anorexia, de Modigliani ou Giacometti; para o outro, transbordante de calorias, a banha sem complexo das personagens de Renoir ou Botero. Ou deveria ser o contrário?
Repare como é difícil livrar-se dessa praga. Você põe na área de serviço, para que a faxineira o carregue, e ele reaparece no armário. Embora feito de vidro vagabundo, não se quebra — ao contrário dos outros, mais bonitos e mais frágeis, cujo lugar vai aos poucos ocupando. Cada vez mais numerosos, fazem parte do refugo doméstico, daqueles trastes que por alguma razão não se botam fora, e que um dia se decide levar para o eterno provisório do sítio ou da casa da praia.
Como a barata, que vai sobreviver à espécie humana, é bem possível que o copo de requeijão dure mais que o casamento. Se isso acontecer, nenhum dos cônjuges vai reivindicá-lo na partilha das “sobras de tudo que chamam lar”, como na canção de Francis Hime e Chico Buarque. E se a separação não dá certo, ele não servirá sequer para um brinde comemorativo: pois entre dois copos de requeijão, como se sabe, não há tintim possível, no máximo um chocho tec-tec.

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