quinta-feira, 19 de abril de 2012

Brasileiro fala Português?

A concepção que se tem do país é a de que aqui se fala uma única língua, a língua portuguesa. Ser brasileiro e falar o português (do Brasil) são, nessa concepção, sinônimos. Trata-se de preconceito, de desconhecimento da realidade, ou antes, de um projeto político - intencional, portanto - de construir um país monolíngue?

Em algum nível todos esses fatos andam juntos. Não é por casualidade que se conhecem algumas coisas e se desconhecem outras: conhecimento e desconhecimento são produzidos ativamente, a partir de óticas ideológicas determinadas, construídas historicamente. No nosso caso, produziu-se o “conhecimento” de que no Brasil se fala o português, e o “desconhecimento” de que muitas outras línguas foram e são igualmente faladas. O fato de que as pessoas aceitem, sem discutir, como se fosse um “fato natural”, que o “português é a língua do Brasil” foi e é fundamental, para obter consenso das maiorias para as políticas de repressão às outras línguas, hoje minoritárias.

            Para compreendermos a questão é preciso trazer alguns dados: no Brasil de hoje são falados por volta de 200 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones), e as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones). Somos, portanto, como a maioria dos países do mundo - em 94% dos países do mundo são faladas mais de uma língua - um país de muitas línguas, plurilíngue.

Se olharmos para nosso passado veremos que fomos, durante a maior parte da nossa história, ainda muito mais do que hoje, um território plurilíngue: quando aqui aportaram os portugueses, há 500 anos, falavam-se no país, segundo estimativas de Rodrigues (1993: 23), cerca de 1.078 línguas indígenas, situação de plurilinguísmo semelhante a que ocorre hoje nas Filipinas (com 160 línguas), no México (com 241), na Índia (com 391) ou, ainda, na Indonésia (com 663 línguas).

O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima, considerando-a “companheira do Império” (Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536[2]). A política linguística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento linguístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história linguística do Brasil poderia ser contada pela sequência de políticas linguísticas homogeinizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram: somente na primeira metade deste século, segundo Darcy Ribeiro, 67 línguas indígenas desapareceram no Brasil - mais de uma por ano, portanto (Rodrigues, 1993:23). Das 1.078 línguas faladas no ano de 1500 ficamos com cerca de 170 no ano 2000, (somente 15% do total) e várias destas 170 encontram-se já moribundas, faladas por populações diminutas e com poucas chances de resistir ao avanço da língua dominante.

Essa ação do estado pode ser observada, por exemplo, no Diretório dos Índios, de 1758, documento com o qual o Marquês de Pombal pretendeu legislar sobre a vida dos índios - primeiro só da Amazônia, depois de todo o Brasil - no período subsequente à expulsão dos Jesuítas. A intenção expressa, de “civilizar” os índios, realiza-se através da imposição do português, língua do Príncipe (...)

            Naquele momento histórico, o documento de Pombal volta-se, sobretudo contra a língua geral, o tupi da costa do Brasil transformado em língua veicular de índios, brancos e negros em vastas porções do território, especialmente na Amazônia, onde também foi e é chamada de nheengatu. O documento marca o início do ocaso desta importante língua veicular, ocaso que vai se acelerar com a chacina de cerca de 40.000 pessoas falantes de nheengatu, índios e negros que pegaram em armas contra a dominação “branca” na revolução denominada Cabanagem, entre 1834 e1841(Bessa Freire, 1983:65). O processo vai se consumar com o desaparecimento do nheengatu em grande parte da Amazônia - mas não em toda - fato causado pela chegada de 300 a 500 mil nordestinos, falantes monolíngues de português, entre 1870, quando começa o ciclo da borracha e 1918, final da Primeira Guerra Mundial. Hoje, apesar desse processo de deslocamento linguístico que o substituiu pelo português nas calhas da maioria dos grandes rios, o nheengatu resiste entre a cidade de Manaus e as malocas do Alto Rio Negro, numa área aproximada de 300.000 km² (...) o nheengatu é o instrumento de comunicação usual da população que aí reside e a língua de comércio?(Bessa Freire, 1983:73) (...)

Não devemos imaginar, entretanto, que leis como o Diretório tenham, por si só, mudado o perfil linguístico do país, ou que tenham sido “obedecidas” tranquilamente pela população. O historiador José Honório Rodrigues chama nossa atenção para a resistência que os diversos grupos linguísticos do país opuseram contra as políticas de homogeneização e glotocídio, numa verdadeira guerra de línguas.

Numa sociedade dividida em castas, em raças, classes, mesmo quando é evidente o processo de unificação da língua, especialmente num continente como o Brasil, onde durante três séculos combateram várias línguas indígenas e negras contra uma branca, não havia nem paz cultural, nem paz linguística. Havia, sim, um permanente estado de guerra. (...) O processo cultural que impôs uma língua vitoriosa sobre as outras não foi assim tão pacífico, nem tão fácil. Custou esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas (Rodrigues, 1985: 42)

Não só os índios foram vítimas da política linguística dos Estados lusitano e brasileiro: também os imigrantes - chegados principalmente depois de 1850 - e seus descendentes passaram por violenta repressão linguística e cultural - já que a língua naturalmente é parte da cultura. O Estado Novo (1937-1945), regime ditatorial instaurado por Getúlio Vargas, marca o ponto alto da repressão às línguas alóctones, através do processo que ficou conhecido como “nacionalização do ensino” e que pretendeu selar o destino das línguas de imigração no Brasil, especialmente o do alemão e do italiano na região colonial de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Foi nesses dois estados, nos quais a estrutura minifundiária e a colonização homogênea de certas regiões garantiram condições adequadas para a reprodução do alemão e do italiano, especialmente, que a repressão linguística, através do conceito jurídico de “crime idiomático”, inventado pelo Estado Novo, atingiu sua maior dimensão.

Durante o Estado Novo, mas, sobretudo entre 1941 e 1945, o governo ocupou as escolas comunitárias e as desapropriou, fechou gráficas de jornais em alemão e italiano, perseguiu, prendeu e torturou pessoas simplesmente por falarem suas línguas maternas em público ou mesmo privadamente, dentro de suas casas, instaurando uma atmosfera de terror e vergonha que inviabilizou em grande parte a reprodução dessas línguas, que pelo número de falantes eram bastante mais importantes que as línguas indígenas na mesma época: 644.458 pessoas, em sua maioria absoluta cidadãos brasileiros, nascidos aqui, falavam alemão cotidianamente no lar, numa população nacional total estimada em 50 milhões de habitantes, e 458.054 falavam italiano, dados do censo do IBGE de 1940 (Mortara, 1950). Essas línguas perderam sua forma escrita e seu lugar nas cidades, passando seus falantes a usá-las apenas oralmente e cada vez mais na zona rural, em âmbitos comunicacionais cada vez menos extensos.

O estado de Santa Catarina, na gestão do governador e depois interventor Nereu Ramos montou campos de concentração, chamados eufemisticamente de “áreas de confinamento”, para descendentes de alemães que insistissem em falar sua língua, entre outras razões. Um desses campos funcionou dentro do que é hoje o campus da Universidade Federal de Santa Catarina, mais especificamente a Prefeitura Universitária.

A partir do recrudescimento do processo, em 1942, as prisões aumentaram, passando, no município de Blumenau, por exemplo, de 282 em 1941, em sua maioria por ocorrências comuns, como embriaguez ou briga em bailes, para 861 no ano seguinte, das quais 271, isto é, 31,5% , pela única razão de se ter falado uma “língua estrangeira”. Isto significou a prisão de 1,5% de toda a população do município no decorrer deste ano e levou ao silenciamento da população. No mesmo ano o Exército Brasileiro, mais especificamente o 32º Batalhão de Caçadores, composto sobretudo de soldados transferidos do Nordeste, deslocados para Blumenau para “ensinar aos catarinenses a serem brasileiros”, carimbou toda a correspondência para o Vale do Itajaí com a frase do ex-governador e ex-ministro das relações exteriores, Lauro Müller: “Quem nasce no Brasil ou é brasileiro ou é traidor.”

A Polícia Militar, em Santa Catarina como em outros estados, prendeu e torturou e obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas “zonas de segurança nacional.” Mais grave que tudo isso: a escola da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando sequelas psicológicas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, ainda que falando alemão.

Um dos fatos mais trágicos, entretanto, é que encontramos na nossa história muito poucas vozes que se opuseram ao esmagador processo de homogeneização, mesmo “entre os intelectuais brasileiros. Causa perplexidade, o fato de nunca ter havido, por parte das diversas correntes políticas de alguma significação na história brasileira, quem defendesse para o país a constituição de uma sociedade culturalmente pluralista”(...)

         Conceber uma identidade entre a “língua portuguesa” e a “nação brasileira” sempre foi uma forma de excluir importantes grupos étnicos e linguísticos da nacionalidade; ou de querer reduzir estes grupos, no mais das vezes à força, ao formato “luso-brasileiro”. Muito mais interessante seria redefinir o conceito de nacionalidade, tornando-o plural e aberto à diversidade: seria mais democrático e culturalmente mais enriquecedor, menos violento e discricionário, e permitiria que conseguíssemos nos relacionar de uma forma mais honesta com a nossa própria história: nem tentando camuflar e maquilar o passado, escondendo os horrores das guerras, dos massacres e da escravidão que nos constituíram, nem vendo a história apenas como uma sequencia de denúncias a serem feitas.

Gilvan Muller de Oliveira é linguista, coordenador do NEP/UFSC ( Núcleo de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Santa Catarina) e pesquisador associado do IPOL (Instituto de Investigaçãoe Desenvolvimento em Política Linguísta).

Texto Original: Site do IPOL: www.ipol.org.br
Brasileiro fala português: Monolinguísmo e Preconceito Linguístico

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